A história de Pelé se registrou das mais diferentes maneiras, nos mais diversos meios. O Rei foi relato em jornal e poesia em livro, foi jogo ao vivo na televisão e foi cartaz de cinema, foi onda de rádio e disco de música, foi pintura em campo e pintura em quadro. Foi fotos, e mais fotos, e mais fotos – das mais impressionantes, das mais artísticas, das mais Pelé. Ainda assim, sabe-se que nem tudo sobre Pelé está registrado. O muito a que se tem acesso é insuficiente para dimensionar quem, ao futebol, foi tudo. E a muitas outras áreas da vida também. Pelé é uma história que ainda se contará por muito tempo, que nunca estará completa. Pelé é muito mais do que registro, aliás – é oralidade, é memória, é encanto que segue se vivendo.

Basta ver a maneira como se deram as reações pela morte do Rei. Toda e qualquer pessoa queria externar sua relação com Pelé. Toda e qualquer pessoa. Podia nem ser positiva, mas queria. Porém, o que prevaleceu mesmo foi a memória viva daquele que se fez incomparável por sua história nos gramados. Milhões e milhões que sequer viram o Atleta do Século ao vivo externaram uma lembrança de vida, uma vivência familiar, instantes que só ouviram falar. Outros milhões que puderam cruzar o caminho de Pelé relataram o que foram encontros de segundos, breves palavras ou trocas de olhares. Quem conheceu o Rei, afinal, costuma carregar a recordação tatuada na mente pelo resto da vida.

E tais lembranças não se resumem apenas a pessoas físicas, mas também a instituições. Só ver a quantidade de clubes e federações que tiveram o gosto de recontar as histórias de Pelé. O Rei estava do outro lado, mas pouco importava: ser goleado pelo maior de todos os tempos, em si, já é uma grandiosíssima honra. Pelé conseguiu ser uma carreira de completas glórias e cada tijolinho dessa trajetória, cada partida, é um orgulho para quem também fez parte dela.

Dentro dessa ideia, duas camisas representam as principais cores do castelo erguido pelo Rei: Seleção e Santos. São as duas equipes que sabem (e isso também é uma honra) que são tão grandes muito por causa de Pelé. Nessa história sobre o Rei que parece sempre incompleta, porque nunca se termina de contar, são os dois times que possuem maior capacidade de adicionar novos capítulos. Porque, afinal, se muita gente desconfia que Pelé era na verdade o futebol transfigurado como gente, ele deixou uma caneta mágica transfigurada como número: o número 10. É através dele que a grandiosidade segue representada. É através dele que o Rei segue vivo.

O valor do número 10 não era tão grande antes de Pelé. E nenhuma outra camisa parecia mais perfeita para simbolizar a excelência, a nota máxima, a completitude do maior de todos os tempos. Pelé era 10 em sua essência como futebolista. E deixou um legado: permitir que todos os outros possam sonhar em ser 10. É o passe para o sonho que o Rei ofereceu a cada um de seus súditos. Enquanto ainda houver a imaginação livre de um menino se sentindo e sonhando como jogador de futebol, o 10 às costas continuará mágico.

É por isso que a mera sugestão de se aposentar a camisa 10, seja do Santos ou da Seleção, não me cai como uma boa ideia. Pelé não precisa ser resguardado. Pelé é onipresença. Não é através da ausência que se recordará seu nome, como geralmente se pensa nesse tipo de homenagem. É através do natural e automático ato de exaltar Pelé ao se deparar com o 1 seguido do 0.

Não existe maior sinal de respeito ao legado do Rei que deixar qualquer um vestir a camisa 10. Porque é exatamente através disso que vamos perceber como ninguém foi como ele. Pelé precisa ser intocável não por se evitar que qualquer um se compare a ele: muito pelo contrário, Pelé é intocável porque realmente ninguém consegue ser capaz. Esta é a sua verdadeira dimensão universal.

Como escreveu o amigo Paulo Júnior, Pelé é a régua. “De onde a conversa parte, até onde o jogo chega”. E essa medida do futebol começa com o número 10. O Rei é o ponto de partida, o parâmetro. Da mesma forma, a régua também termina com o número 10. Não é possível estipular o que vem depois desse limite. Paradoxalmente, essa régua não é linear. Ela também é a infinitude de direções possíveis além do começo e do fim, além do que foi Pelé. As outras tantas histórias que partem do 10, que não são de Pelé, mas sempre serão um pouco sobre ele.

Que o jogo não seja privado da camisa 10. Que novos capítulos continuem escritos a partir de Pelé. Se alguém tentar se aproximar do Rei usando a 10 às costas, sorte do futebol, porque sua mágica estará intacta. E se for algum pereba com a 10 às costas, sorte também do futebol, porque ele seguirá como o esporte mais democrático, que permite a qualquer um ter devaneios de ser um Pelé. Essa mágica talvez seja até maior. Porque ninguém conseguirá, mas o Rei nunca deixará de alimentar esses sonhos.

A camisa 10 sempre será imaculada, independentemente de quem a vista. Porque, antes de todos os outros, a vestiu ninguém menos que Pelé – um antes que não é necessariamente linha do tempo, mas sim ordem de grandeza. Não é preciso saber muito de futebol ou da vida para entender que não há nada maior que a 10 de Pelé. E essa sua assinatura é que seguirá presente no futebol. Se Pelé foi o futebol, são aqueles dois números que traduzem de forma tão simples o que é o todo.

Por Leandro Stein na Trivela



Fonte: Trivela....from Trivela https://ift.tt/5wLH0UF
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